As Associações Secretas

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Análise Serena e Minuciosa do Projecto de Lei apresentado ao Parlamento

Fernando Pessoa

Estreou-se a Assembleia Nacional, do ponto de vista legislativo, com a apresentação, por um deputado, de projecto de lei sobre “associações secretas”. De tal ordem é o projecto, tanto em sua natureza como em seu conteúdo, que não há que felicitar o actual Parlamento por lhe ter sido dada essa estreia. Antes há que dizer-lhe Absit omen!, ou seja, em português, Longe vá o agouro!

Apresentou o projecto o Sr. José Cabral, que, se não é dominicano, deveria sê-lo, de tal modo o seu trabalho se integra, em natu­reza, como em conteúdo, nas melhores tradi­ções dos Inquisidores. O projecto, que todos terão lido nos jornais, estabelece várias e for­tes sanções (com excepção da pena de morte) para todos quantos pertençam ao que o seu autor chama “associações secretas”, sejam quais forem os seus fins e organização.

Dada a latitude desta definição, e conside­rando que por “associação” se entende um agrupamento mais ou menos permanente de homens, ligados por um fim comum, e que por “secreto” se entende o que, pelo menos par­cialmente, se não faz à vista do público, ou, feito, se não torna inteiramente público, posso, desde já, denunciar ao Sr. José Cabral uma associação secreta – o Conselho de Ministros.

De resto, tudo quanto de sério ou de importante se faz em reunião neste mundo, faz-se secre­tamente. Se não reúnem em público os con­selhos de ministros, também o não fazem as direcções dos partidos políticos, as tenebrosas figuras que orientam os clubes desportivos, ou os sinistros comunistas que formam os con­selhos de administração das companhias comerciais e industriais.

Embora uma interpretação desta ordem legitimamente se extraia do frasear pouco nacionalista do Sr. José Cabral, creio, tanto porque assim deve ser, como pelos encómios com que o projecto foi afagado pela imprensa pseudo-cristã, que as “associações secretas”, que ele verdadeiramente visa, são aquelas que envolvem o que se chama “iniciação”, e por­tanto o segredo especial a esta inerente.

Ora no nosso país, caída há muito em dormência a Ordem Templária de Portugal, desaparecida a Carbonária – formada para fins transitórios, que se realizaram -, não exis­tem, suponho, à parte uma outra possível Loja martinista ou semelhante, mais do que duas “associações secretas” dessa espécie. Uma é a Maçonaria, a outra essa curiosa organiza­ção que, em um dos seus ramos, usa o nome profano de Companhia de Jesus, exactamente como, na Maçonaria, a Ordem de Heredom e Kilwinning usa o nome profano de Real Ordem da Escócia.

Dos chamados jesuítas não tratarei, e por três motivos dos quais calarei o primeiro. Os outros dois são: que não creio, por mais razões do que uma, que eles corram risco de, aprovado que fosse o projecto, lhes serem apli­cadas as suas sanções; e que não creio por uma razão só, que o Sr. José Cabral tenha preten­dido que tal aplicação se fizesse. Presumo pois que o projecto de lei do urgente deputado se dirija, total ou principalmente, contra a Ordem Maçónica. Como tal o examinarei.

Não faço, creio, ofensa ao Sr. José Cabral em supor que, como a maioria dos anti-maçons, o autor deste projecto é totalmente desconhe­cedor do assunto Maçonaria. O que sabe dele é até, porventura, pior que nada, pois, natu­ralmente, terá nutrido o seu anti-maçonismo da leitura da imprensa chamada católica, onde, até nas coisas mais elementares na matéria, erros se acumulam sobre erros, e aos erros se junta, com a má vontade, a mentira e a calúnia, senhoras suas filhas.

Não creio que o Sr. José Cabral conviva habitualmente com os livros de Findei, Kloss ou Gould, ou que passe as suas horas de ócio na leitura atenta da Ars Quátuor Coronatorum ou das publicações da grande Loja de Iowa. Duvido, até, que o Sr. José Cabral tenha grande conheci­mento da literatura anti maçónica – Barruel ou Robison, ou Eckert – tão admirável, aliás, do ponto de vista humorístico. Nem terá tido porventura noção, sequer de ouvido, do artigo célebre do Padre Hermann Gruber na Catholic Encyclopaedia, artigo citado com elogio em livros maçónicos, e em que o doutor jesuíta por pouco não defende a Maçonaria.

Ora se o Sr. José Cabral está nesse estado de trevas com respeito à natureza, fins e orga­nização da Ordem Maçónica, suponho que em igual condição estejam muitos dos outros mem­bros da Assembleia Nacional, com a diferença de que não se propuseram legislar sobre maté­ria que ignoram. Sendo assim, nem o deputado apresentante, nem os seus colegas de assem­bleia, estarão, talvez em estado de medir clara­mente as consequências nacionais, internas e sobretudo externas, que adviriam da aprovação do projecto. Como conheço o assunto suficiente temente para saber de antemão, e com certeza, quais seriam essas consequências, vou fazer patrioticamente presente da minha ciência ao Sr. José Cabral e à Assembleia Legislativa de que é ornamento.

fernando_pessoa_4659Começo por uma referência pessoal, que cuido, por necessária, não dever evitar. Não sou maçon, nem pertenço a qualquer outra Ordem semelhante ou diferente. Não sou porém anti-maçon, pois o que sei do assunto me leva a ter uma ideia absolutamente favorável da Ordem Maçónica. A estas duas cir­cunstâncias, que em certo modo me habilitam a poder ser imparcial na matéria, acresce a de que, por virtude de certos estudos meus, cuja natureza confina com a parte oculta da Maçonaria – parte que nada tem de político ou social -, fui necessariamente levado a es­tudar também esse assunto – assunto muito belo, mas muito difícil, sobretudo para quem o estuda de fora.

Tendo eu, porém, certa pre­paração, cuja natureza me não proponho indi­car, pude ir, embora lentamente, compreen­dendo o que lia e sabendo meditar o que compreendia. Posso hoje dizer, sem que use de excesso de vaidade, que pouca gente haverá, fora da Maçonaria, aqui ou em qualquer outra parte, que tanto tenha conseguido entranhar­-se na alma daquela vida, e portanto, e deri­vadamente, nos seus aspectos por assim dizer externos.

Se falo de mim, e deste modo, é para que o Sr. José Cabral e os colegas legisladores saibam perfeitamente quem lhes está falando, e que o que vão ler, se quiserem, é escrito por quem sabe o que está escrevendo. Não que o que vou dizer exija profundos conheci­mentos maçónicos: é matéria puramente de superfície, da vida externa da Ordem. Exige porém conhecimentos, e não ignorâncias, fan­tasias ou mentiras.

Começo a valer. Creio não errar ao pre­sumir que o Sr. José Cabral supõe que a Maçonaria é uma associação secreta. Não é. A Maçonaria é uma Ordem secreta, ou, com plena propriedade, uma Ordem iniciática. O Sr. José Cabral não sabe, provavelmente, em que consiste a diferença. Pois o mal é esse – não sabe. Nesse ponto, se não sabe, terá de continuar a não saber. De mim, pelo menos, não receberá a luz. Forneço-lhe, em todo o caso, uma espécie de meia luz, qualquer coisa como a “treva visível” de certo grande ritual. Vou insinuar-lhe o que é essa diferença por o que em linguagem maçónica se chama “ter­mos de substituição”.

A Ordem Maçónica é secreta por urna razão indirecta e derivada – a mesma razão por que eram secretos os Mistérios antigos, incluindo os dos primitivos cristãos, que se reuniam em segredo, para louvar a Deus, em o que hoje se chamariam Lojas ou Capítulos, e que, para se distinguir dos profanos, tinham fórmulas de reconhecimento – toques, ou pa­lavras de passe, ou o que quer que fosse. Por esse motivo os romanos lhes chamavam ateus, inimigos da sociedade e inimigos do Império – precisamente os mesmos termos com que hoje os maçons são brindados pelos sequazes da Igreja Romana, filha, talvez ilegítima, daquela maçonaria remota.

Feito assim o meu pequeno presente de meia-luz, entro directamente no que verdadeiramente interessa – as consequên­cias que adviriam, para o país, da aprovação do projecto de lei do Sr. José Cabral. Tratarei primeiro das consequências internas.

A primeira consequência seria esta coisa nenhuma. Se o Sr. José Cabral cuida que ele, ou a Assembleia Nacional, ou o Governo, ou quem quer que seja, pode extinguir o Grande Oriente Lusitano, fique desde já desenganado. As Ordens Iniciáticas estão defendidas, ab origine symboli, por condições e forças muito especiais que as tornam indestrutíveis de fora. Não me proponho explicar o que sejam essas forças e condições: basta que indique a sua existência.

De resto, têm os Srs. deputados a prova prática em o que tem sucedido noutros países, onde se tem pretendido suprimir as Obediên­cias maçónicas. Pondo de parte a Rússia – onde nem eu nem os Srs. deputados sabemos o que verdadeiramente se passa, e onde, aliás, quase não havia Maçonaria -, poderemos considerar os casos da Itália, da Espanha e da Alemanha.

Mussolini procedeu contra a Maçonaria, isto é, contra o Grande Oriente de Itália mais ou menos nos termos pagãos do projecto do Sr. José Cabral. Não sei se perseguiu muita gente, nem me importa saber. O que sei, de ciência certa, é que o Grande Oriente de Itália é um daqueles mortos que continuam de perfeita saúde. Mantém-se, concentra-se, tem-se depurado, e lá está à espera; se tem em que esperar é outro assunto. O camartelo do Duce pode destruir o edifício do comu­nismo italiano; não tem forca para abater colunas simbólicas, vazadas num metal que procede da Alquimia.

Primo da Rivera procedeu mais branda­mente, conforme a sua índole fidalga, contra a Maçonaria Espanhola. Também sei ao certo qual foi o resultado – o grande desenvolvi­mento, numérico como politico, da Maçonaria em Espanha. Não sei se alguns fenómenos secundários, como, por exemplo, a queda da Monarquia, teriam qualquer relação com esse facto.

Hitler, depois de se ter apoiado nas três Grandes Lojas cristãs da Prússia, procedeu segundo o seu admirável costume ariano de morder a mão que lhe dera de comer. Deixou em paz as outras Grandes Lojas – as que o não tinham apoiado nem eram cristãs – e, por intermédio de um tal Goering, intimou aquelas três a dissolverem-se. Elas disseram que sim – aos Goerings diz-se sempre que sim – e continuaram a existir. Por coincidência, foi depois de se tomar essa medida que começa­ram a surgir cisões e outras dificuldades adentro do partido nazi. A história, como o Sr. José Cabral deve saber, tem muitas destas coincidências.

Como tenho estado a apresentar razões e factos até certo ponto desanimadores para o Sr. José Cabral, vou desde já animá-lo com a indicação de um resultado certo, positivo, que adviria da aprovação do seu projecto. Resultaria dele – alegre-se o dominicano! – um grande número de perseguições a oficiais do exército e da armada (excepto em Cascais) e a funcionários públicos. Perderiam os seus lugares os que não quisessem ter a indignidade de repudiar a sua Ordem.

Resultaria, por­tanto, a miséria para as suas famílias, onde é possível – e isto é que é grave – que se encon­trassem pessoas devotas de Santa Teresinha do Menino Jesus, personagem que ocupa, na actual mitologia portuguesa, um lugar um pouco acima de Deus. Resolver-se-ia, é certo, no estilo inesperado do roulement que não rola, o problema do desemprego – para aque­les actuais desempregados, bem entendido, que tem por Grão Mestre Adjunto o Sr. Con­selheiro João de Azevedo Coutinho.

Fernando Pessoa / Álvaro de CamposSeriam essas as consequências internas da aprovação do projecto: dois zeros – um para o efeito anti-maçónico da lei, outro para a barriga de muita gente. Seriam essas as consequências internas. Vou tratar agora das consequências externas, isto é, das consequên­cias que adviriam da aprovação do projecto para a vida e o crédito de Portugal no estrangeiro. Esse aspecto da questão, esse resultado, não só possível mas quase certo, creio bem que não ocorreu ao Sr. José Cabral. Presto homenagem – e a sério ao seu patriotismo, embora lamente que seja um patriotismo tão analfabeto.

Existem hoje em actividade, em todo o mundo, cerca de seis milhões de maçons, dos quais cerca de quatro milhões nos Estados Unidos e cerca de um milhão sob as diversas Obediências independentes do Império Britâ­nico. Assim, cinco-sextos dos maçons hoje em actividade são maçons de fala inglesa. O milhão-restante, ou conta parecida, acha-se repartido pelas várias Grandes Obediências dos outros países do mundo, das quais a mais importante e influente é talvez o Grande Oriente de França.

As Obediências maçónicas são potências autónomas e independentes, pois não há go­verno central da Maçonaria, que é por isso menos “internacional” que a Igreja Romana. Há Obediências maçónicas que poucas rela­ções têm entre si; há até Obediências que estão de relações suspensas ou cortadas. Dou dois exemplos. A Grande Loja de Inglaterra cortou em 1877, por um motivo técnico, as relações, que ainda não reatou, com o Grande Oriente de França. A mesma Grande Loja cortou, em 1933, as relações com a Grande Loja das Filipinas, em virtude de divergên­cias – cuja natureza não sei mas presumo – quando à maneira de desenvolver a Maçonaria na China.

Assim a Maçonaria necessariamente toma aspectos diferentes – políticos, sociais e até rituais – de país para país, e até, a dentro do mesmo país, de Obediência, para Obediência, se houver mais que uma. Dou um exemplo. Há em França três Obediências independen­tes – o Grande Oriente de França, a Grande Loja de França (prolongada capitularmente pelo Supremo Conselho do Grau 33) e a Loja Regular, Nacional e, Independente para a França e suas Colónias. O Grande Oriente é acentuadamente, radical e anti-religioso; a Grande Loja limita-se a ser liberal e anti-clerical; a Grande Loja Nacional não tem política nenhuma. Dou outro exemplo. O Grande Oriente de França tem uma grande influência política, mas, excepto através dessa, pouca influência social. A Grande Loja de Inglaterra não se preocupa com política, mas a sua influência social é enorme.

Conquanto, porém, a Maçonaria esteja assim materialmente dividida, pode conside­rar-se como unida espiritualmente. O espírito dos rituais, e sobretudo o dos Graus Simbó­licos (nos quais, e sobretudo no Grau de Mestre, está, já para quem saiba ver ou sentir, a Maçonaria inteira), é o mesmo em toda a parte, por muitas que sejam as divergências verbais e rituais entre graus idênticos, traba­lhados por Obediências diferentes. Em palavras mais perspícuas, mas necessariamente menos claras: quem tiver as chaves herméticas, em qualquer forma de um ritual encontrará, sob mais ou menos véus, as mesmas fechaduras.

Resulta desta comunidade de espírito pro­fundo, deste íntimo e secreto laço fraternal, que ninguém quebrou nem pode quebrar, (que) uma Obediência, ainda que tenha poucas ou nenhu­mas relações com outra, não vê todavia com indiferença o ser esta atacada por profanos. Os maçons da Grande Loja de Inglaterra não têm, como se disse, relações com os do Grande Oriente de França. Quando, porém, recentemente surgiu em França, a propósito dos casos Stavisk e Prince, uma campanha anti-maçónica, de origem aliás ultra-suspeita, a vaga simpática, que potencialmente se estava formando em Inglaterra pelos conservadores que atacavam o Governo Francês, desapareceu imediatamente. O Times, conservador mas acentuadamente maçónico, relatou as mani­festações contra o Governo Francês com uma antipatia que roçou pela deturpação de factos. E há muitos casos semelhantes, como o de certo escritor maçónico inglês, que em seus livros constantemente ataca o Grande Oriente de França, mudar completamente de atitude ao responder a uma escritora inglesa anti-maçónica, que afinal dissera pouco mais ou menos o mesmo que ele havia sempre dito.

Nisto tudo, que serviu de exemplo, trata-se de coisas de pouca monta, simples campanha de jornal, e por certo de atitudes espontânea e individuais da parte dos maçons que as tomaram. Quando porém se trate de factos maçónicamente graves, como seja a tentativa por um governo, de suprimir ou perseguir uma Obediência maçónica, já a acção dos maçons não é tão individual e isolada, nem se resume a uma maior ou menor antipatia jornalística. Provam-no diversas complicações, de origem aparentemente desconhecida, que encontrou em países estrangeiros o Governo de Primo de Rivera, e que encontraram, e ainda encontram, os Governos da Itália e da Alemanha.

Esses, porém, são países grandes e fortes, com recursos, de vária ordem, que em certo modo podem contrabalançar aquelas oposi­ções. Vem mais a propósito citar o caso de um país que não é grande nem influente na política europeia em geral. Refiro-me à Hun­gria e ao que se passou com o célebre emprés­timo americano.

Aqui há anos, pouco depois da guerra, o Governo Húngaro decretou a supressão da Maçonaria, do seu território. Pouco depois negociava um empréstimo nos Estados Unidos. Estava o empréstimo praticamente feito quando veio da América a indicação final de que ele não seria concedido se não se restabelecessem “certas instituições legítimas”. O Governo Húngaro percebeu e viu-se obrigado a entrar em transacções com o Grão Mestre; disse-lhe que autorizava a reabertura das Lojas com a condição (que parece do Sr. José Cabral) de que nelas pudessem assistir profanos. É escusado­ dizer que o Grão Mestre recusou. O Governo manteve portanto a “supressão das Lojas…” e o empréstimo não se fez. Ora isto sucedeu com a Maçonaria Americana, que não faz propriamente política nem mantêm relações muito intensas com as Obediências europeias, à excepção das britânicas. Tratava-se, porém, de uma grave injúria à Maçonaria, e o resul­tado foi o que se vê.

Não venha o Sr. José Cabral dizer-me que não precisamos de empréstimos do estran­geiro. Nem só de empréstimos vive o país. Precisa, por exemplo, de colónias, sobretudo das que ainda tem. E precisa de muitas outras coisas, incluindo o não incorrer na hostilidade activa dos cinco e tal milhões de maçons que, por apolíticos, ainda nos não têm hostilizado.

Creio que disse o suficiente para que o Sr. José Cabral e os outros Srs. deputados compreendam perfeitamente qual pode e deve ser o alcance da aprovação deste projecto na vida e no crédito de Portugal. Antes de acabar, porém, quero dar-lhe uma pequena amostra da espécie de gente em cuja antipatia activa incorreríamos.

Tomarei por exemplo a Grande Loja Unida de Inglaterra, não só pela importância que para nós têm as nossas relações com aquele país, mas também porque qualquer acção dessa Grande Loja – a Loja-Mãe do Uni­verso, com cerca de 450.000 maçons em actividade – arrasta consigo todos os maçons de fala inglesa e todas as Obediências dos países protestantes. Do resto da Maçonaria não é preciso falar.

São maçons, sob a obediência da Grande Loja de Inglaterra, três filhos do Rei – o Príncipe de Gales, Grão Mestre Provincial de Surrey, o Duque de York, Grão Mestre Pro­vincial de Middlesex, e o Duque de Kent, antigo Primeiro Grande Vigilante. É maçon o genro do Rei, Conde de Harwood, Grão Mes­tre Provincial de West Yorkshire. São maçons, em sua maioria, os fidalgos ingleses, sobretudo os de antiga linhagem. São maçons, em grande número, os prelados e sacerdotes da Igreja de Inglaterra, o clero mais profundamente culto de todo o mundo, a Igreja protestante que mais perto está, em dogma e ritual, da Igreja de Roma. Não prossigo, porque já basta… Lembro todavia que os três grandes jornais conservadores ingleses — o Times, o Sunday Times e o Daily Telegraph – são ao mesmo tempo maçónicos…

Acabei. Convém, porém, não acabar ainda. Provei neste artigo que o projecto de lei do Sr. José Cabral, além do produto da mais completa ignorância do assunto, seria, se fosse aprovado: primeiro, inútil e improfícuo; segundo, injusto e cruel; terceiro, um malefí­cio para o país na sua vida internacional. Não considerei, porque não tinha que considerar, se a Maçonaria merece o mau conceito em que evidentemente a tem o Sr. José Cabral e outros que nada sabem da matéria. Esse ponto estava fora da linha do meu argumento. Como, porém, a maioria da gente não sabe raciocinar, pode alguém supor que me esqui­vei a esse ponto. Vou por isso tratar dele embora protestando contra mim mesmo. Quem sofre com isso é o leitor.

Fernando PessoaA Maçonaria compõe-se de três elementos: o elemento iniciático, pelo qual é secreta; o elemento fraternal; e o elemento a que cha­marei humano – isto é, o que resulta de ela ser composta por diversas espécies de homens, de diferentes graus de inteligência e cultura, e o que resulta de ela existir em muitos países, sujeita portanto a diversas circunstâncias de meio e de momento histórico, perante as quais, de país para país e de época para época, reage, quanto à atitude social, diferentemente.

Nos primeiros dois elementos, onde reside essencialmente o espírito maçónico, a Ordem é a mesma sempre e em todo o mundo. No terceiro, a Maçonaria – como aliás qualquer instituição humana, secreta ou não – apresenta diferentes aspectos, conforme a mentalidade de maçons individuais, e conforme circuns­tâncias de meio e momento histórico, de que ela não tem culpa.

Neste terceiro ponto de vista, toda a Maço­naria gira, porém, em torno de uma só ideia – a tolerância; isto é, o não impor a alguém dogma nenhum, deixando-o pensar como entender. Por isso a Maçonaria não tem uma doutrina. Tudo quanto se chama “doutrina maçónica” são opiniões individuais de maçons, quer sobre a Ordem em si mesma, quer sobre as suas relações com o mundo profano. São divertidíssimas: vão desde o panteísmo natu­ralista de Oswald Wirth até ao misticismo cristão de Arthur Edward Waite, ambos eles tentando converter em doutrina o espírito da Ordem. As suas afirmações, porém, são sim­plesmente suas; a Maçonaria nada tem com elas. Ora o primeiro erro dos anti-maçons consiste em tentar definir o espírito maçónico em geral pelas afirmações de maçons parti­culares, escolhidas ordinariamente com grande má fé.

O segundo erro dos anti-maçons consiste em não querer ver que a Maçonaria, unida espiritualmente, está materialmente dividida, como já expliquei. A sua acção social varia de país para país, de momento histórico para momento histórico, em função das circunstân­cias do meio e da época, que afectam a Maço­naria como afectam toda a gente. A sua acção social varia, dentro do mesmo país, de Obe­diência para Obediência, onde houver mais que uma, em virtude de divergências doutri­nárias – as que provocaram a formação dessas Obediências distintas, pois, a haver entre elas acordo em tudo, estariam unidas.

Segue de aqui que nenhum acto político ocasional de nenhuma Obediência pode ser levado à conta da Maçonaria em geral, ou até dessa Obediên­cia particular, pois pode provir, como em geral provém, de circunstâncias políticas de momento, que a Maçonaria não criou.

Resulta de tudo isto que todas as campa­nhas anti-maçónicas – baseadas nesta dupla confusão do particular com o geral e do oca­sional com o permanente – estão absoluta­mente erradas, e que nada até hoje se provou em desabono da Maçonaria. Por esse critério – o de avaliar uma instituição pelos seus actos ocasionais porventura infelizes, ou um homem por seus lapsos ou erros ocasionais – que haveria neste mundo senão abominação? Quer o Sr. José Cabral que se avaliem os papas por Rodrigo Bórgia, assassino e incestuoso? Quer que se considere a Igreja de Roma perfeita­mente definida em seu íntimo espírito pelas torturas dos Inquisidores (provenientes de um uso profano do tempo) ou pelos massacres dos albigenses e dos piemonteses?

E contudo com muito mais razão se o poderia fazer, pois essas crueldades foram feitas com ordem ou com consentimento dos papas, obrigando assim, espiritualmente a Igreja inteira.

Sejamos, ao menos justos. Se debitamos à Maçonaria em geral todos aqueles casos particulares, ponhamos-lhe a crédito, em contrapartida, os benefícios que dela temos rece­bido em iguais condições. Beijem-lhe os jesuítas as mãos, por lhes ter sido dado acolhimento e liberdade na Prússia, no século dezoito – quando expulsos de toda a parte, os repudiava o próprio Papa – pelo maçon Frederico II. Agradeçamos-lhe a vitória de Waterloo, pois que Wellington e Blucher eram ambos maçons. Sejamos-lhe gratos por ter sido ela quem criou a base onde veio a assentar a futura vitória dos Aliados – a Entente Cordiale, obra do maçon Eduardo VII. Nem esqueçamos, finalmente, que devemos à Maçonaria a maior obra da literatura moderna – o Fausto, do maçon Goethe.

Acabei de vez. Deixe o Sr. José Cabral a Maçonaria aos maçons e aos que, embora o não sejam, viram, ainda que noutro Templo, a mesma Luz. Deixe a anti-maçonaria àqueles anti-maçons que são os legítimos descendentes intelectuais do célebre pregador que desco­briu que Herodes e Pilatos eram Vigilantes de uma Loja de Jerusalém.

Deixe isso tudo, e no próximo dia 13, se quiser, vamos juntos a Fátima. E calha bem porque será 13 de Fevereiro – o aniversário daquela lei de João Franco que estabelecia a pena de morte para os crimes políticos.

Fernando Pessoa – “Associações Secretas” in Diário de Lisboa, nº 4388, 4-II-1935.
Retirado do livro “Fernando Pessoa – Obra em Prosa”

Fernando Pessoa conclui com o opúsculo que se transcreve a seguir:

“Sr. José Cabral, seja patriota por conta própria: Retire esse projecto! Deixe a Maçonaria aos maçons e aos que, embora o não sejam, viram, ainda que em outro Templo, a mesma Luz. Deixe a antimaçonaria àquela imprensa que é legítima descendente intelectual do célebre pregador que descobriu que Herodes e Pilatos eram Vigilantes de uma Loja de Jerusalém. Retire o seu projecto!

Retire, e no próximo dia 13, se quiser, vamos juntos a Fátima. E calha bem, porque é o 13 de Fevereiro – o aniversário da lei do João Franco que estabelecia a pena de morte para os crimes políticos.”

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